Ex-ministro
da Defesa e Segurança Pública acredita que Bolsonaro quer armar a população para
uma eventual guerra civil
O ex-ministro da Defesa e Segurança Pública no Governo
Temer, o pernambucano, Raul Jungmann, elaborou
uma carta aberta a todos os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)
fazendo um alerta sobre os novos decretos editados pelo presidente Jair
Bolsonaro (sem partido), que facilitam o acesso da população a armamento.
Jungmann apela para que a Suprema Corte faça uma
"urgente intervenção" para coibir a medida. Ele também fez referência
à recente invasão ao Capitólio nos Estados Unidos, organizada por apoiadores do
ex-presidente Donald Trump (EUA). Para Raul Jungmann, "o armamento da
cidadania para 'a defesa da liberdade' evoca o terrível flagelo da guerra
civil, e do massacre de brasileiros por brasileiros".
Leia o texto de Jungmann na íntegra:
"Carta aberta ao Supremo Tribunal Federal
Sr. Presidente e Srs.
Ministros do Supremo Tribunal Federal,
Srs. Ministros,
Dirijo-me a essa egrégia
Corte na dupla condição de ex-ministro da Defesa Nacional e da Segurança
Pública, com o objetivo de alertar para a gravidade do nefasto processo de
armamento da população, em curso no Brasil.
É iminente o risco de
gravíssima lesão ao sistema democrático em nosso país com a liberação, pela
Presidência da República, do acesso massificado dos cidadãos a armas de fogo,
inclusive as de uso restrito, para fins de "assegurar a defesa da
liberdade dos brasileiros" (sic), sobre a qual inexistem quaisquer
ameaças, reais ou imaginárias.
O tema do armamento dos
cidadãos, até aqui, foi um assunto limitado à esfera da segurança pública em
debate que se dava entre os que defendiam seus benefícios para a segurança
pessoal e os que, como nós, e com base em ampla literatura técnica, afirmávamos
o contrário - seus malefícios e riscos às vidas de todos.
Ao transpor o tema da
segurança pública para a política, o Executivo incide em erro ameaçador, com
efeitos sobre a paz e a integridade da Nação, pelos motivos a seguir. Em
primeiro lugar, viola um dos principais fundamentos do Estado, qualquer Estado,
que é o de deter o monopólio da violência legal em todo o território sobre a
sua tutela, alicerce da ordem pública e jurídica e da soberania do país.
Em segundo lugar, pelo
fato de que as Forças Armadas são a última ratio sobre a qual repousa a
integridade do Estado nacional. O armamento da população proposto - e já em
andamento -, atenta frontalmente contra o seu papel constitucional, e é
incontornável que façamos a defesa das nossas FFAA. Em terceiro, é inafastável
a constatação de que o armamento da cidadania para "a defesa da
liberdade" evoca o terrível flagelo da guerra civil, e do massacre de
brasileiros por brasileiros, pois não se vislumbra outra motivação ou propósito
para tão nefasto projeto.
Ao longo da história, o
armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de estado,
massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da
serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão.
No plano da segurança
pública, mais armas invariavelmente movem para cima as estatísticas de
homicídios, feminicídios, sequestros, impulsionam o crime organizado e as milícias,
estando sempre associadas ao tráfico de drogas.
Por essas razões,
Estados democráticos aprovam regulamentos rígidos para a sua concessão aos
cidadãos, seja para a posse e, mais ainda, para o porte. Dramaticamente, Srs.
Ministros, estamos indo em sentido contrário à vida, bem maior tutelado pela
lei e nossa Constituição, da qual sois os guardiães derradeiros.
Em 2018, pela primeira
vez em muitos anos, revertemos a curva das mortes violentas, por meio de um
amplo esforço que culminou com a lei do Susp - Sistema Único de Segurança
Pública -, que permanece inexplicavelmente inoperante. Hoje, lamentavelmente,
as mortes violentas voltaram a subir em no corrente ano e no ano anterior,
enquanto explodem os registros de novas armas em mãos do público: 90% a mais em
2020, relativamente a 2019, o maior crescimento de toda série histórica,
segundo dados da Polícia Federal.
Com 11 milhões de jovens
fora da escola e do trabalho, os "sem-sem", vulneráveis à cooptação
pelo crime organizado, a terceira população carcerária do planeta - 862.000
apenados, segundo o CNJ, e um sistema prisional controlado por facções
criminosas, polícias carentes de recursos, de meios e de ampla reforma, mais
armas em nada resolvem o nosso problema de violência endêmica - antes a agravam
e nos tornam a todos reféns.
Está, portanto, em
vossas mãos, em grande parte, impedir que o pior nos aconteça. Por isso
apelamos para a urgente intervenção desta egrégia Corte, visando conjurar a
ameaça que paira sobre a Nação, a Democracia, a paz e a vida.
Lembremo-nos dos
recentes fatos ocorridos nos EUA, quando a sede do Capitólio, o congresso
nacional americano, foi violada por vândalos da democracia. Nossas eleições
estão aí, em 2022. E pouco tempo nos resta para conjurar o inominável
presságio.
Respeitosamente,
Raul
Jungmann"
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